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Textos_Juridicos-->A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ -- 11/01/2000 - 00:10 (Leo da Silva Alves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Constituição Cidadã

Dez anos depois de encerrado o processo, com a promulgação das Constituições estaduais em 89, Consulex resgata histórias dos bastidores da Assembléia Nacional Constituinte.

Um impressionante relato dos gastos, do jogo de interesses e das propostas curiosas que marcaram a elaboração da atual Constituição brasileira.




Léo da Silva Alves
Professor de Direito Administrativo, acompanhou dentro do Congresso Nacional todo o processo de elaboração da nova Constituição brasileira.



Fascinante, caro e inútil
O processo de elaboração da nova Constituição brasileira foi, sem dúvida, o mais fascinante, caro e inútil espetáculo já produzido em toda a história da política, das atividades jurídicas e da dramaturgia nacional. Fascinante, porque mobilizou a nação, despertou a cidadania e fomentou o interesse e as esperanças nos destinos do país.; caro, porque consumiu uma montanha de recursos públicos, muito além do que poderia ser previsto no mais oneroso dos orçamentos.; e inútil porque a maior parte dos trabalhos não passou de jogo de cena, servindo exclusivamente para colocar no palco atores de terceira grandeza, ávidos por espaços na mídia, sedentos por instantes de fama.
Para passar a idéia de participação popular, iniciou-se a coleta de sugestões da sociedade. Enxurradas de correspondências chegavam todos os dias, espelhando os anseios do povo. Esses expedientes nunca passaram dos funcionários do Legislativo, encarregados de catalogá-los, sem nenhum sentido prático. Inventou-se, depois, a figura das Emendas Populares. O povo saia às ruas para juntar, no mínimo, 30 mil assinaturas e, assim, formalizar uma proposta que, a bem da verdade, ninguém considerava. Só teve uma que foi levada ao Plenário: a que garantia renda a deficientes físicos. Inserida no texto, tornou-se mais um dispositivo inválido. Nunca foi levado a sério.
Centenas de milhares de pessoas foram mobilizadas em peregrinação a Brasília. Amontoavam-se nos corredores do Congresso Nacional e ocupavam os jardins da Esplanada dos Ministérios. Mais uma vez, para nada. As verdadeiras decisões - as questões de essência - eram tomadas na calada da noite, em negociações nem sempre transparentes, à revelia do grito das ruas.
Para encantar a massa sedenta por direitos e favores, montou-se um circo. Inchou-se a Constituição de dispositivos sem nenhuma validade prática. Juros de 1% ao mês, salário mínimo “digno”, aposentadoria com vantagens e muitos, muitos direitos trabalhistas. A Constituição do Japão só tem um artigo a respeito, que é realista: “Todos tem o direito e a obrigação de trabalhar”. O resultado foi uma Carta de boas intenções, que nada acrescentou à qualidade de vida do povo brasileiro.
Emendada e remendada inúmeras vezes, a Constituição Cidadã hoje se encontra completamente desfigurada. Obrigações atribuídas ao Estado foram ou estão sendo retiradas.; garantias oferecidas aos trabalhadores, funcionários públicos e aposentados foram ou estão sendo subtraídas.; o mar de felicidade anunciado festivamente ao Brasil acabou por afogar os sonhos de quem não percebeu que a Constituinte, no fundo, era só mais um espetáculo. Fascinante. Caro. E, como foi produzido, absolutamente inútil.


O anteprojeto dos notáveis
Já existindo uma Assembléia Nacional Constituinte convocada, o Presidente da República, José Sarney, decidiu nomear uma comissão de notáveis para elaborar um anteprojeto de Constituição. 50 pessoas notabilizadas por decreto receberam a incumbência. Gastaram 104 dias laborando às custas do Tesouro. Só em transporte e hospedagem foi gasta uma importância que um operário comum levaria 313 anos para ganhar. Com esse valor, poderiam ser produzidas 14 milhões de refeições a fragelados da seca. Ao todo, consumiu-se, à época, 7 milhões 314 mil cruzados, dinheiro suficiente para equipar 4 mil salas de aulas.
Tudo sem proveito. O próprio Presidente da República discordou de algumas propostas do grupo. E os parlamentares, eleitos para a tarefa, não quiseram nem ouvir falar do anteprojeto dos notáveis.


De pastel a Tancredo
A instalação da Assembléia Nacional Constituinte ocorreu no dia 1º de fevereiro de 1987, domingo de sol. Cedo, preparavam-se para a solenidade os 559 parlamentares, das mais diversas formações. Por exemplo, 48 médicos, 47 engenheiros, 171 advogados, 40 empresários rurais 24 economistas, 23 jornalistas, 15 professores, 9 radialistas, 11 administradores, 6 pastores evangélicos. 26 eram mulheres. 6 negros. 5 operários. 23 deles tinham menos de 30 anos.; 102 estavam na faixa dos 31 aos 40 anos.; 59 contavam mais de 60 primaveras.
Na Esplanada dos Ministérios o clima era de festa. Um imenso comércio foi improvisado no vasto gramado. Vendia-se de tudo. De pastel a medalhas com a imagem de Tancredo Neves. Mas nem todos estavam contentes. Era o caso de Maria Aparecida. Às 7 horas, montou a sua carrocinha de cachorros-quentes. Três horas depois, no rigor do sol, contabilizou apenas oito unidades vendidas. Ao meio-dia, olhou desolada o movimento do caixa e não fez jus ao nome: desapareceu.
Os músicos da Orquestra de Brasília viveram um impasse. Convocados para um concerto ao ar livre, coroando o clima festivo, encontravam-se encurralados pelas condições meteorológicas. Um deles explicava: “Se continuar esse sol, os instrumentos desafinam. Se chover, a umidade destrói o equipamento.” O concerto acabou saindo com sol e a desafinação não foi notada. No tumulto que se formou, ninguém seria capaz de distinguir o acorde de um violino da batida de um tambor...
Na entrada do Congresso Nacional, Guarda de Honra e tapete vermelho. O Presidente da República chegou visivelmente tenso. Era conhecido o temor de ser vaiado. Para surpresa, recebeu aplausos. As vaias sobraram para o Ministro da Fazenda Dilson Funaro, meses antes aclamado como herói nacional, o salvador da economia doméstica. Como o seu plano – o Plano Cruzado – ruiu, o prestígio também foi para o brejo.
A propósito do Plano Cruzado, o deputado Amaral Netto, já durante os debates da Constituinte, lembrou na tribuna que o Presidente José Sarney tinha mandado inscrever, na cédula de 500 cruzados, a inscrição DEUS SEJA LOUVADO. Como o Plano afundou, o Presidente estaria, segundo o deputado, disposto a mudar a inscrição para SEJA O QUE DEUS QUISER.


Renúncia, não
O deputado Ulisses Guimarães já era o presidente da Câmara dos Deputados e o substituto do Presidente da República, que não tinha vice. Era, também, o presidente do PMDB. E não abriu mão de se.; ainda, o presidente da Assembléia Nacional Constituinte. “Isso porque dizem que ele está velho, doente e desmemoriado”, comentou um parlamentar.
Quando sugeriram a Ulisses que renunciasse a pelo menos a presidência do partido, ele disse: “Neste país não se renuncia a nada. O único que renunciou foi Jânio Quadros e até hoje se arrepende.”

Em defesa da moradia
O primeiro problema a ser resolvido na Constituinte foi o da moradia. Moradia dos deputados. A Coordenação de Habitação da Câmara dos Deputados tinha o seguinte problema: possuia 432 apartamentos funcionais para dividir entre 487 parlamentares. Possuia, em termos. Desses imóveis, 55% estavam irregularmente ocupados por deputados que perderam o mandato e não se dignavam ao óbvio: devolver os apartamentos. A solução foi pagar um incentivo de valor equivalente a 55 salários mínimos para que os representantes do povo cumprissem o que era obrigação. Gastou-se, à época, quase um milhão de dólares somente nesse ítem.


Farsa, fumo e baratas
Os primeiros dias de trabalho foram de conversa e conversa. O desencanto começou a atordoar até mesmo os constituintes. O deputado Wladimir Palmeira, do PT carioca, chegou a dizer: “Que desorganização! Estou aqui há dias sem fazer nada, sem votar nada, assistindo a uma discussão interminável para nada. “
Luiz Inácio Lula da Silva, também deputado, andava desapontado: “Em 15 anos presidindo assembléias com até 150 mil trabalhadores, nunca vi uma zona como essa. Uma loucura. Estão há cinco horas discutindo e não conseguem votar nada. Se colocarem 500 trabalhadores nesta sala, sai votação em 5 minutos.”
Adroaldo Streck, jornalista conceituado, eleito pelo PDT do Rio Grande do Sul, era outro pessimista: “Meu faro jornalístico me faz sentir um cheiro de grande farsa rondando essa Assembléia, pelo jeito destinada a mudar tudo para não mudar nada.”
Uma deputada pernambucana, por sua vez, trazia ao Plenário uma especial preocupação: não conseguia vaga nos aviões para deixar Brasília. Era caso, segundo ela, para a Constituinte resolver.
Outra deputada, eleita pelo Rio de Janeiro, estava envolvida em dividir o Plenário entre fumantes e não fumantes. Nessa proposta, conquistou logo o apoio do senador Lourival Baptista, que presidiu o Grupo Assessor de Combate ao Tabagismo do Ministério da Saúde. O senador, a propósito, era autor de projeto proibindo que se fumasse em Plenário. Só que o projeto nunca foi à votação, pois desapareceu três vezes.
O deputado mineiro José Elias Murad, médico, sugeria que fosse requerido ao Ministério do Trabalho um minucioso estudo sobre as condições ambientais da Constituinte. Era preciso, enfim, avaliar o grau de insalubridade do local onde deputados, senadores, jornalistas, seguranças e funcionários ficavam, em média, 6 horas por dia. “Se for constatado, com aparelhos sofisticados, que o local está realmente poluído, vamos pedir a interdição do Plenário”, sustentava o parlamentar.
Outro deputado mineiro, Hélio Costa, reclamou na tribuna da quantidade de baratas que encontrou no seu apartamento funcional. E prometeu levar o caso à Organização Mundial da Saúde.


Sessão espírita
A Assembléia Nacional Constituinte tinha pela frente outro grande desafio. Não se tratava da mazela social nem de questões estruturais do Estado. Era a falta de quorum nas suas sessões. Não conseguia-se quorum sequer para votar o Regimento Interno da Constituinte. No quarto dia após a instalação pomposa dos trabalhos, apenas 60 dos 559 constituintes marcaram presença. O fato levou o Jornal do Brasil a abrir manchete na edição de 5 de fevereiro: “Constituintes aderem a rotina do Congresso e deixam Plenário vazio”.
No dia 27 de fevereiro, sexta-feira, 14h15, o presidente da Assembléia, Ulisses Guimarães, abre a sessão. O deputado Adylson Motta pede a palavra e afirma que não há no Plenário os 94 constituintes necessários à formação do quorum. “O livro acusa a presença de 170 constituintes”, diz o presidente. “Mas aqui só tem 54”, insiste Adylson Motta. “Então, está encerrada a sessão”, rende-se Ulisses Guimarães. A sessão dura exatos 3 minutos.
Preocupado com a imagem passada à nação, Ulisses Guimarães decide acelerar o ritmo e estabelece a realização de reuniões até nos fins-de-semana. No primeiro sábado do esforço concentrado, 370 parlamentares gazeteiam. Aparecem apenas 189.
O jornal Correio Braziliense chegou a publicar uma lista de 80 parlamentares fantasmas. Gente que não aparecia nem para receber o pagamento, automaticamente creditado em conta particular no Banco do Brasil.
O fenômeno acompanhou a Constituinte até o fim. Um ano depois, em julho de 1988, a falta de quorum ainda era um tormento. Certo dia, o deputado Amaral Netto, ao observar que discursava apenas para o deputado Fernando Santana, que ocupava a presidência, disse: “Esta não é uma sessão da Constituinte, Senhor Presidente. Esta é uma sessão espírita”.


Nem a Alemanha agüenta
Decorridos seis meses da instalação e apesar dos faltosos, os trabalhos deslancharam. Pelo menos, na aparência e nos custos. Os papéis que passavam pela gráfica do Senado representavam uma despesa fantástica. O volume era tão impressionante que despertava a imaginação. Se fossem colocados um ao lado do outro, dariam para cobrir 2.117 quilômetros. Empilhados, chegariam à altura de um prédio de 374 andares. Dois milhões de dólares foram consumidos apenas no serviço gráfico, nesse período de 180 dias.
O Centro de Processamento de Dados - Prodasen, por sua vez, precisou aumentar a sua capacidade, adquirindo novo computador IBM ao preço de 1 milhão e 800 mil dólares. Discos magnéticos importados foram alugados por 800 mil dólares.
A gráfica e o Prodasen, com cerca de dois mil funcionários, gastaram nesses 6 meses, somente em horas extras, o equivalente ao salário de 10 mil trabalhadores da construção civil. Mas os gastos não paravam por aí. O painel eletrônico, que registrava as votações, consumiu meio milhão de dólares em reformas. Mais meio milhão de dólares saiu do Tesouro para pagar a importação de duas novas impressoras off-set.
Nem o gasto de café escapou ao cálculo. No primeiro semestre, foram consumidas 4 milhões e 200 mil xícaras, numa média de três toneladas do pó por mês.
Nos 500 banheiros da Câmara e do Senado, eram utilizados mensalmente 640 mil metros de papel higiênico, 2 mil rolos de toalhas de papel e 2 mil litros de sabonete líquido. Só no Anexo IV, onde concentra-se a maior parte dos gabinetes de deputados, o gasto mensal com papel higiênico foi acrescido em 288 mil metros.
A cada dia, trabalhadores na limpeza retiravam 18 mil sacos de lixo, de 100 litros cada. E usavam a cada mês 3.200 litros de detergente e 1.500 litros de desinfetante para manter os sanitários em condições básicas de higiene.
Em seis meses, a conta geral já estava em 64 milhões de dólares. E ainda viriam outros 14 meses. “Se a Alemanha tivesse que sustentar isso, teria quebrado”, disse um parlamentar alemão em visita ao Brasil.


Desordem mental
Toneladas de papel. Toneladas de café. Resulta, desse espetacular consumo, o anteprojeto da nova Constituição. O Relator, então deputado Bernardo Cabral, correu os olhos e disse: “É inaproveitável.”
Os constituintes conseguiram montar uma colcha de retalhos de dispositivos repetidos e conflitantes, buscando, em essência, agradar aos eleitores, criando, no papel, uma sociedade utópica, que nenhum país do mundo logrou atingir.
O senador Afonso Arinos, então com 81 anos de idade, do alto do seu saber jurídico, disse que “só Deus salva esta Carta.” O então Ministro da Justiça, Paulo Brossard, definiu o processo como “fantasias, desordem mental, realismo exacerbado, ausência de uma reflexão mínima, total ausência de critérios, de seriedade.”
O art. 3º, por exemplo, enunciava: “O Estado é o instrumento e a mediação da soberania do povo”. A frase era bonita, mas não faria nenhuma falta se fosse retirada do texto. O Estado continuaria sendo o mesmo. E o povo também.
O inciso IV do art. 6º era um primor. Explicava o objetivo do Estado: “Favorecer o sentido social da liberdade, a fim de que todos disponham de tantas liberdades quanto o que mais dispõe de liberdades entre todos, critério em que legitima a intervenção equalizadora do Estado para alinhar a sociedade na direção de uma democracia de liberdades igualadas”. Consegue-se entender?
O art. 9º era um atestado de ingenuidade ao dizer que o Brasil “não permitirá que conflitos internacionais em que não é parte atinjam seu território.” Se esse dispositivo estivesse em vigor na Segunda Guerra Mundial, o torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães seria classificado como inconstitucional. O que, todavia, não teria impedido que as embarcações tupiniquins fossem afundadas.


Amamentar, nunca
Não menos risível foi a emenda proposta por um deputado, preocupado com o texto que garantia “que homem e mulher são iguais em direitos e obrigações”. Emendou, de pronto: “com exceção das (obrigações) que têm a sua origem na gestação, no parto e no aleitamento”.
O deputado João Alves, que depois ficaria famoso como um dos Anões do Orçamento, propôs Emenda, estabelecendo que “serão instaladas no interior brasileiro (...) colônias agrícolas penais, para onde devem ser conduzidos todos os criminosos do país.”
Uma deputada, em relação à qual o próprio pai depositou dúvida sobre a sanidade mental, queria que a nova Constituição outorgasse a seguinte garantia: “Nenhum louco poderá ser internado sem o seu prévio consentimento.”
O art. 13, “b”, ordenava que o Estado sustentasse o cidadão. A alínea ”c” ordenava que a União concentrasse recursos para esse fim. E a alínea “d”, desconfiada de que poderia faltar dinheiro, insistia que o Tesouro deveria reservar recursos para extinguir a pobreza absoluta.
Nesse fase, uma senhora, trabalhadora no serviço de limpeza da Câmara dos Deputados, Dona Lina, foi vista chorando pelos cantos. Abordada, com preocupação, explicou: “Estou emocionada, seu doutor. É que a Constituinte votou nessa noite o fim das filas no INPS e agora eu vou poder levar os meus filhos para consultar.” E diante ao espanto do interlocutor, concluiu: “Parece que amanhã vão votar o fim da pobreza.” E votaram mesmo. E ficou no texto da atual Constituição. A miséria, que hoje se arrasta pelas ruas do país, é, portanto, uma afronta à Constituição Cidadã.


Índios e velhos
O lobby foi impressionante. De todos os lados. Funcionários públicos, prefeitos, vereadores, ruralistas, sem-terras, sem-teto, deficientes físicos, estudantes, índios, ecologistas, homossexuais. Até a Confederação Nacional dos Bispos montou um grupo de pressão, que ficou conhecido como o lobby santo. Os empresários também. Com muito uísque e muito dinheiro.
Para vender as suas idéias, valia de tudo. Certo dia, cansado, o presidente Ulisses Guimarães desabafou ao senador Jarbas Passarinho: “Não agüento mais. Eles chegam a entrar no banheiro com a gente”.
Certa ocasião, os aposentados deslocaram-se em caravanas para Brasília. Em frente ao Congresso Nacional, encontraram índios que também faziam o seu lobby. Num gesto de relações públicas, os velhinhos estenderam uma faixa, com os dizeres: “OS APOSENTADOS APOIAM OS ÍNDIOS DO BRASIL”. Os índios arrumaram uma cartolina e retribuiram: “ÍNDIO APÓIA VÉIO.”


Roupinha comum
O mais eficiente movimento de pressão era o dos proprietários rurais, comandados à época pelo poderosa União Democrática Ruralista. “Virgindade de moça e propriedade de terra ninguém tira”, era o lema que se ouvia.
Na votação decisiva sobre Reforma Agrária, 700 apartamentos de hotéis foram ocupados pelos líderes da UDR. No parque da cidade foi instalado o restante do contingente. Um caminhão frigorífico servia 8 mil quilos de carne. Outro caminhão, com legumes e verduras, garantia a boa comida. Na outra ponta estavam os trabalhadores rurais, reunidos pela CONTAG, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Espalhados pelos gramados de Brasília, dormindo no chão e alimentando-se de bananas, investiam no processo aos gritos de “Reforma Agrária Já”.
Para o dia mais importante, foram distribuídas senhas a cada lado. Pois o pessoal da UDR não vascilou. “Duas meninas nossas vestiram uma roupinha comum e conseguiram as senhas com as lideranças do PT e do PCB”, contava um ruralista, às gargalhadas. No Plenário, só deu eles. “A classe produtora rural foi vitoriosa em todas as suas proposições na Constituinte”, diria, depois, o líder do movimento, deputado Ronaldo Caiado.


Monumento à Bíblia
A Constituinte, na verdade, foi dominada por grupos. Era o Grupo dos 32, era o Grupo dos Moderados, era o Centrão, era o Grupo do Consenso. Fora desses grupos, nenhuma proposta vingava.
No Centrão, o mais forte, estavam os ruralistas, os empresários, os conservadores. A ordem era mudar tudo o que estava sendo mudado. Para ter-se uma idéia, das 1.844 Emendas apresentadas na votação em segundo turno, 1.530 tinham por objetivo suprimir dispositivos inseridos no Projeto. Assim, todas as vitórias dos progressistas foram transformadas em nada pelo rolo compressor do Centrão.
Para reunir adeptos, todos os meios eram legítimos. Concessões de rádio eram distribuídas como merenda em escola de periferia. Um deputado evangélico recebeu um terreno para construir um monumento à Bíblia. E justificou: “É honroso e bem aplicado trocar o meu voto por benefícios para a comunidade.”


O tiro fatal
Domingo de sol. Um tiro ecoa em um apartamento funcional na SQS 309, em Brasília. É o prédio residencial dos senadores. Morre o senador Fábio Lucena, 47 anos, eleito pelo Amazonas. Suicida-se após uma crise depressiva.
Naquele domingo, discutia-se na Constituinte o capítulo das Comunicações e matéria relativa à proibição de repasse de verbas públicas para escolas particulares. O assunto envolvia muitos interesses. Parlamentares e lobistas, nervosos, faziam os cálculos dos votos. Alguém chega e avisa: “Morreu o senador Fábio Lucena”. A pergunta que se ouviu foi: “Ele era do nosso grupo?” Quando a resposta foi negativa, todos, aliviados, disseram: “Ainda bem”. E continuaram ali, indiferentes à morte de um homem, ao luto da família e a perda do país.


Pouco uísque
A nova Constituição do Brasil foi aprovada às 2h07 de 2 de setembro de 1988, para ser promulgada no dia 8 de outubro. Na madrugada festiva da

“Nós vamos, a Constituição fica. Fica para ficar, pois com ela ficará a democracia, a liberdade, a Pátria como uma casa de todos, com todos e para todos”.
O líder do PFL, José Lourenço, atribuiu o êxito da Constituinte ao Presidente Sarney, que a convocou, e ao deputado Ulisses Guimarães, que a conduziu. Já um parlamentar religioso achou que Jesus Cristo é quem deveria ser lembrado. “Viva Jesus Cristo”, gritou, ao microfone. “Amém”, respondeu Ulisses Guimarães.
A comemoração estendeu-se para uma mansão à beira do Lago Paranoá. 300 parlamentares, assessores e jornalistas brincavam e dançavam ao som de valsas, rocks e lambadas. “Tem muita animação e pouco uísque”, era a única reclamação. O deputado Brandão Monteiro, que organizou a festa mas não era o dono da casa, culpava a presença de 90 penetras. E dizia: “Eu não sou dono do boteco para buscar uísque a essa hora”.
Ali perto, na favela do Paranoá, a miséria dormia indiferente.
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